5 de março de 2010

ZINE #6




1. Haverá Fuga Possível da Densa Neblina?

Exaltado aproxima-se o espírito livre do vento irrequieto, condutor das verdades flamejantes, avançando, destemido e imaterial, sentindo-se capaz de atravessar por entre as estreitas brechas de incontáveis camadas que escondem o gérmen grotesco do humano moderno, cujas máscaras racham nos rodopios de entusiasmadas tempestades da sabedoria gloriosa. Sem receios se colide com as muralhas titânicas dessas ilusões fronteiriças, derrubada está a barreira da inexactidão, já se pode vislumbrar os horizontes sem as lentes turvas do engano, acabaram-se as miragens, e o que surge então? É o vácuo imenso de um amplo descampado encoberto de nevoeiro cerrado, estéril de opções, onde parece nada existir que seja digno de se tocar ou sondar. Estranhamente percebe-se a longínqua profundidade dos céus esculpidos numa redoma, mesmo apesar da neblina opressiva, mas é avançando no caminho que se avista ao fundo o vale da origem, obscurecido pelas altas montanhas do projecto da perpetuação humana, e quão escorregadias não serão as suas superfícies calcárias. Sente-se o universo suspenso, antecipando o decorrer de algum género de acontecimento único, o que se estará a passar? Só pode ser aquilo ali, todos os olhares, expressivamente apreensivos, recaem para o exacto centro deste terreno sinuoso onde se assiste ao que parece ser o nascimento inerte do arquétipo racional, estamos perante o momento preciso em que ele aparece surgindo do ventre da civilização desgraçada, caindo em violência no pântano viscoso das convenções e intransigências desmedidas, sem o saber porém, cobre-se completamente das raízes canceladoras dos mais altivos pensamentos, condenando-se à chegada.

No recém-parido de imediato se tenta habitar a semente de uma consciência singular, pronta a expandir-se num futuro raiar iluminador, ofegante pela sua individualidade sem o saber ainda… Mas ele caiu do útero de ancestrais vícios instintivos, é ingénuo e inocente, desprotegido, está húmido, ensanguentado, implorando para que alguém o agarre ou conforte, e prontamente surgem os braços de vultos soberanos, ansiosos por se assegurarem da sua posse, esboçando sorrisos ardilosos por debaixo das suas pesadas vestimentas escuras que lhes ocultam a quase totalidade do corpo e face, prontificados estão eles a se tornarem nos mentores deste novo protótipo maleável, não perdem tempo, os saqueadores. O choroso corpo é içado até ao altar da metamorfose, é necessário a proclamação do ritual quanto antes, eles não se podem incorrer no risco do perigoso livre-pensador escapar aos seus cárceres condicionantes, e ainda confusa com a situação a criança sente um alvoroço sádico sem saber bem o que está a acontecer. Eleva-se o punhal incandescente do projecto da perpetuação humana resplandecendo sob os astros, pronto a atingir as vísceras, certeiro, no âmago da sua ainda transmutável consciência, e nem tempo lhe dão para sentir receio, é tudo demasiado rápido, a lâmina enterra-se carregada de ímpeto...

A cerimónia ritualista está consumada, e do original livre-pensador apenas resta uma forma corporal sombria e tímida, ao que subitamente algo incompreensível, qual força silenciadora, começa a convencê-lo a olhar em frente num torpor indiferente, a ferida deixada é demasiado visceral, causa-lhe transtorno olhar para o sangue recente escorrendo ou para qualquer outro lado que seja, principalmente aquilo que outrora ele fora, somente lhe é permitido vislumbrar os túneis pouco iluminados que lhe destinam como caminho. Eles cravaram na pele a génese da excelsa aurora esgotada, é nada mais que o pedestal da sua prolongação, resta-lhe tão só obedecer, seguir as runas segundo a fanática hipnose.

E eis que surgem, diante dos seus olhos esgazeados, e pela primeira vez, as místicas palavras, resplandecendo de austeridade:

Nunca questiones a ordem máxima das coisas, o erro será a tua estrela polar, segue-a sem escrúpulos!



2. Entregues à Era do Eclipse.

Ó penumbra alta, a tua indiferença esmorece-nos os sentidos, tu chegaste e vieste para ficar, é sabido, despojaste de nós a carência por sentirmos a inspiração dos espessos raios solares longínquos, tornaste imprudente sermos sequer tocados pela quente ternura de iluminações plenas, sagazes. Os solos gelam-se na tua presença, quanta infertilidade trouxeste. Foi o pavor humano em se imaginar rodeado de vastas planícies primaveris que legitimaram a tua permanência, puseste a descoberto vulnerabilidades enfermas, mediocridades abjectas, e não demorou muito até nós próprios adivinharmos a estranha marcha da glória escarlate que avançaria não fosse o desmedido rochedo celeste da subordinação a fixar-se para além do céu, ocultando no perjúrio tamanhas verdades desprezadas, verdades temidas. Quiseram todos deixar de ver, esconderam-se na noite e mais tarde fugiram ainda das trevas, invadiam agora as cavernas estreitas tornando-as nos seus novos dormitórios de onde raramente saiam, encolhiam-se todos num canto afagando-se mutuamente, escarnecidos pela realidade. Pouco mais era desejado, nem outros compartimentos se exploravam, salvaguardada estava a satisfação enquanto se garantisse a intermitência de luzes esmorecidas, apenas o suficiente para não se tropeçar. Era o mínimo imprescindível, o máximo acautelado.



3. Nós que Vergados Estamos,
a Vossa Derrota Esperamos…

O Humano carece de vontade para escapar à opressão do facilitismo, porque é menos penoso permanecer rebaixado àquilo que se impinge vagamente para acreditar como sendo o convencionado, o acertado. Quando é necessário estimular a dinâmica e a coragem intelectual, existe sempre um receio paralisante impeditivo ao avanço dos trilhos da superiorização onde se pisa e esmaga, envolto de orgulho, as pedras da inércia e do desentendimento. Em vez disso ele permanece estagnado, confuso e temeroso do seu destino, rasteja na lama e ai se fixa, esperando a chegada de uma mão familiar que o erga.

Porém o que lhe escapa ao entendimento é a malícia mascarada dos enganadores que se voluntariam para o guiarem, falta-lhe engenho para desvendar as intenções escondidas da anulação ao enaltecimento Individual que esses fraudulentos sugadores praticam, e assim se prolonga a intrujice, culminando na adequação confirmada de mais um ciclo gestor que se fundamenta na coerção moralista prolongada da tendência estanque para venerar ao máximo a inacção intelectual, onde se assume as convenções impingidas como inabaláveis castelos que defendem a permanência do Humano, e por acréscimo, proclama-se a certeza nas máximas indiscutíveis como a excelsa salvação da qual não podemos abdicar, é ela que segura no chicote e afasta aqueles que são vistos como os prevaricadores da dúvida, esses corajosos espíritos livres de origens criminosas, cujos ventos se elevam precisamente acima das barcaças assombradas do dogma que flutua, inerte, no oceano maioral. E nunca esquecer que procurar as razões, ou seja, não olhar para as certezas assimiladas de outra forma que não seja a de absoluta submissão, pode agitar o sono leve dos torpes demónios portadores das verdades penetrantes, nunca questionar, apenas aceitar, limitar ao máximo o leque das premissas invocadas nos julgamentos e nas avaliações daquilo que nos é estranho, repetindo o mesmíssimo processo para todos os casos independentes aos quais somos sujeitos a usar a nossa desconfiança, esse é o segredo, a burla miraculosa. Mas mais imperativo ainda é servir-nos o menos possível da desconfiança, a não ser em direcção ao lado oposto das nossas crenças, e nunca esquecer, só existem dois lados, o nosso e o restante, que nem se pense sequer em introduzir mais possibilidades.

Para sempre fechar os portões às outras mil perspectivas com que se pode visionar os horizontes, constantemente afastar a contestação e a procura das cientes razões, eis a chave indispensável à existência humana dominante. Levar a individualidade a procurar asilo nas distantes florestas solitárias, onde não consiga enfurecer as convenções, considerá-la sem hesitações nem meias medidas como um empecilho inconveniente, prejudicial à nossa prosperidade.



4. Eis a Alvorada… Entremos, Não Hesitemos!

Não conheço este sítio nem tão pouco sei como aqui vim parar, a atmosfera transpira demasiado aquela sensação baça, meio confusa, de sonho semi-lúcido, mas a presença palpável da qual me sinto envolvido, aliada à estanquidade firme do que me rodeia, confirma-me, por certo, que estou acordado. É estranho, nada me parece concreto por estes lados e em simultâneo é tudo tão vívido, à minha frente fixa-me nos olhos, indiferente, um templo de pedra compacta, despreocupado com a sua aparente antiguidade à muito desprezada. As suas paredes externas estão carregadas de sinais do esquecimento, parece ser absoluto o abandono por ele sofrido, o que me conduz a aproximar da sua entrada, tal é a minha admiração, talvez compaixão. Encontro-me agora mais próximo, o que me permite reparar num aviso repousando por cima do imenso pórtico, onde se lê, em rudes letras esculpidas, o seguinte título introdutório:

“TEMPLO DA PERPETUAÇÃO HUMANA”

Nada me faria demover de entrar neste espaço enigmático pronto a ser descodificado, e assim avancei, inspirando-me nessa premissa. A aparência externa nada fazia antever aquilo que me era permitido testemunhar neste instante, estava de momento a penetrar uma ampla galeria misteriosamente iluminada de acabamentos imaculados, coberta de inscrições do chão ao tecto, de parede a parede, com o mais infinito número de textos da mais inimaginável quantidade possível de diferentes formas encriptadas, outras tanto mais como menos perceptíveis, dos vastos idiomas e símbolos que irradiam um colossal universo de significados por desvendar… a luz encandeia-me no limiar do excessivo e do suportável, com uma veemência quase obcecante. A riqueza expressiva com a qual me vi atingido não teria explicação traduzível, as únicas lacunas nas paredes homogéneas eram entradas dilatadas para novas galerias, todas elas por si tão ou mais amplas, iluminadas e cobertas de escrituras quanto a primeira onde me encontrava, podia até adivinhar a progressiva sucessão de ainda mais e mais intermináveis compartimentos semelhantes a este, divergindo entre si apenas na crescente grandiosidade. Prossegui fascinado, estupefacto ao princípio, sem saber exactamente para onde focar a minha atenção. Mas uma curiosa escultura megalítica, semelhante a um Dólmen fundado em rude pedra, todo ele também escrito e centralizado na enorme sala, destoava-se do resto pela sua forma tosca e singular. Pareceu-me ser o indício lógico para compreender onde tinha eu vindo parar, quis conhecer os seus segredos, outra forma não havia sem ser a leitura das suas palavras, e assim aclamavam:

“Entraste em mim, o Templo da Perpetuação Humana, é este o derradeiro monumento onde não prestarás devoção a divindades de ouro maciço nem a máscaras de diamante, eu sou o epicentro onde as ilusões se derrubam e as verdades não se ocultam, sejam quais forem as consequências. Que desde já se esclareça, a possibilidade de saíres ou entrares permanece em indefinição, mas cautela, é provável que as portas se tranquem um dia, e isso só os teus desígnios o ditarão, tal como a possibilidade de, quando isso acontecer, poderes estar dentro ou fora dos meus recantos, e em que lado preferirás ficar encarcerado, isso também os teus propósitos te dirão, não os meus… em mim não habitam vontades.

Mas questionarás com certeza, e antes de tudo, onde estou eu, o Templo da Perpetuação Humana, para te ser possível saberes por consequência onde estás tu tendo em conta uma noção de espaço ou tempo perceptível, exequível segundo conhecidos princípios lógicos. Porém eu não me defino por esses parâmetros, eu estou dentro de ti mas sou anterior a tudo, logo tu estarás na face exterior e interior, em simultâneo, e ulteriormente, de mim e da totalidade também. Numa extensível, talvez cíclica comunhão permanente, reténs-te nos meus antros cujos existem somente estando, por sua vez, retidos nas expansíveis cavernas daquilo que tu e o todo são, de dentro para fora, de fora para dentro. Tenta perceber, os limites espaciais e temporais, aqui, nos meus domínios e como os conheces, não têm significado absolutamente nenhum, muito menos importância, pelo menos por agora, esquece isso, tu és nada e tudo, todos e ninguém, o macrocosmo e o microcosmo num só. Comecemos pelas bases. Destina antes a tua atenção para o que te rodeia, estas paredes que vês são incendiadas pela arrebatadora veemência surgida na anulação das falsas convenções humanas, sólidas em aparência, mas frágeis na sua composição, prontas a serem reduzidas ao pó que simbolizam. Quererás tu também sentir o chão, que acreditas ser firme, a vibrar como nunca pensaste ser possível, desfazendo-se de seguida sobre os teus pés? Aqui residem os abismos da loucura e da ansiedade, a liberdade tem desses inconvenientes e sinuosas são as suas falésias. Cuidado ao prosseguires, muitos foram, de entre os bravos exploradores, os que se perderam na imensidão labiríntica destes compartimentos, tantos se obcecaram por brilhos mal-encarados, tantos são os que se perdem ainda, procurando-se a si mesmos constantemente em emaranhados sem meio, fim, nem princípio, talvez ainda os encontres algures por ai, imersos na incoerência, provavelmente excêntricos, ou talvez não, quem sabe... Que com o seu exemplo aprendas a guiar-te no vazio, e a controlar-te no descontrolo. Mas de pouco este aviso te servirá.

Aqui, neste Dólmen propositadamente grosseiro para o qual o teu olhar se fixa, apenas se delineia, perante os caminhos que te preparo, o método a proceder, e mesmo assim não poderia ele ser mais vago ou ambíguo. As restantes peças conciliadoras tu mesmo terás de explorar, cabe-te experimentar as numerosas relações possíveis entre os infinitos prismas existentes até conseguires segurar a chave, que tão esguia e múltipla consegue ser… Será que queima? Será que congela? O resto só a desconfiança e a astúcia, aliando-se num crescendo simbiótico, o farão. Não é num momento súbito que descodificarás as minhas paredes, o meu chão, os meus tectos. Não te apresses, e lembra-te sempre das falésias. Não tires conclusões precipitadas, nunca te fies nas superfícies e muito menos confies nos teus primeiros ou mesmo nos teus segundos pressentimentos, não dês demasiados saltos em falso, a queda pode ser única, e mais uma vez, cuidado com as falésias.

Mas comecemos então. Porque será que raros são os que em mim quiseram entrar? Qual será, servindo como proposição inicial, a causa máxima da mediocridade humana, o impedimento à procura dos meus domínios? Ponderaste, por ventura, nisso alguma vez? Pois tem em conta o seguinte, o humano precisa-se medíocre, as convenções e os dogmas, as certezas morais dos povos, têm de ser como ferro, algo unânime e inconfundível, que vos transforme numa expressão comum, é esta a base que vos sustém, como unidade, seja. E se fossem vós, as pessoas abstractamente falando e a um nível global, refractadas em tais singulares moldes, individualmente desproporcionais entre todas, forjadoras das suas interpretações exclusivas no gládio social, criadoras das imensas relações psicológicas às quais prestam tributo, onde estaria o entendimento depois disso, como se canalizariam os egos? Não que surjam propriamente condições harmoniosas com o oposto, mas conseguirás adivinhar o novelo emaranhado e os nós extensivamente mais apertados que não se condensariam a partir dai? Os fios condutores querem-se o mais direitos possível, e como tal, a intransigência é essencial para todos. Necessita-se de um conjunto de erros universais, se assim os quiseres chamar, mas que por todos seja partilhado, é essa a única premissa necessária, que o erro seja a vossa estrela polar, e também que as ilusões vos sosseguem. A individualidade, a nível absoluto, é uma arma demasiado instável, e não se pode nunca querer tal estado de superioridade para os colectivos maiorais, fala-se sempre tão frívola e imponderadamente sobre a liberdade para todos, mas afinal quem alguma vez soube o que é a liberdade sem cair nos poços da cruel demência? Como se realmente alguém a quisesse, na sua resplandecência opaca, nunca cristalina mas sempre imunda, como se sequer conhecessem os demónios que não se soltariam dos pântanos fosse ela chamada… mas ninguém a invoca, à liberdade, apenas os masoquistas livre-pensantes, e mesmo assim nem esses, nunca na vida, a atingirão. A perseguição será eterna, e com certeza adivinharás o tormento de uma procura onde o fugitivo se vai exponencialmente afastando quanto mais for o esforço dedicado na aproximação.

Observarás certamente as múltiplas injustiças deflagradas em virtude do estabelecimento organizacional, tanto psicológico como moral, aqui descrito, e não te deverá escapar ao raciocínio os desentendimentos provocados por consequência a partir de tal mecanismo cerebral por vós assumido (sem o realmente ser, com certeza a maioria até prefere continuar em negação). É congruente considerar esse mesmo facto como a eterna causa final para um impedimento a níveis superiores, porém hipotético, de relações coerentes entre os povos e mesmo entre as pessoas dentro dos povos. Contudo, no seguimento deste pensamento poderás alimentar uma dúvida pertinente, inspirada na noção de que sendo vós uma raça dotada de observado racionalismo, e estando a razão presente em larga escala, ou seja, sendo utilizada para várias situações concretas a interpretação e a análise exaustiva de acontecimentos específicos, nunca deixando de lado as rigorosas verificações onde só após um estudo minucioso dos vários parâmetros de entrada e saída é que se tirará alguma conclusão e só a partir dai se procederá à acção imune de ímpetos, em princípio o mais acertada possível consoante as possibilidades, como podem, em termos humanos e sociais, cair na tentação de subjugarem-se a tamanhas barbaridades comportamentais e assumir a sentença de condenações que em nada se justificam perante si? Talvez seja possível responder-te a isto a partir da cumplicidade de duas variáveis, sendo a primeira o conhecimento de que a ambição das pessoas é o repouso encontrado nas limitações interpretativas e no conforto da ignorância. Não é sabendo os segredos por detrás das rodas dentadas da engrenagem civilizacional, e muito menos aplicando reinvenções motivadoras de superiores organizações mentais, que se obtém o áureo descanso das consciências, ou mesmo a anulação das ansiedades, e todos os mais prudentes limitados entre vós desejam a anulação das ansiedades. Por outro lado o Indivíduo, aquele que não se conforma com as superfícies escorregadias e sempre ambiciona diligenciar as verdades, quer-se irrequieto, sempre desconfortado, em sofrimento pleno. Porém, é essencial não se promover a sua expansão numérica nos seios sociais, seria contraproducente pensar de outro modo.

A outra variável assenta na vossa própria constituição psíquica, e por mais lamentável ou trágico que seja, terás de admitir, sem pretensões fantasiosas, a tendência natural para agirem segundo a malícia e o prejuízo, é talvez subjugando-se ao império das fábulas erróneas, da acção impetuosa e imponderada de supostas morais que em toda a sua totalidade apenas vos levam a precipitarem-se nas conclusões, que se consegue suster a humanidade, e tal faz-se a todo o custo. Porque sem dúvida o humano podia, e tem capacidade para tal, seguir os critérios científicos, a imaculada exactidão racional, mas não vos tornaria isso em meros escravos da inevitabilidade, cancelando o livre arbítrio? Vocês precisam da ilusão de que ainda vos resta algum controlo sobre as várias dimensões tanto físicas como metafísicas por vós exploradas, daí caírem nas batalhas morais sem sentido onde os porta-estandartes erguem o símbolo do mal-entendido e do equívoco. Nisto atribuem significados máximos, erradamente incorrigíveis, ao módulo das causas-consequências, apenas justificando-as segundo os estratagemas da conveniência pessoal. Submetem-se a tamanho desespero, motivado através de carências narcisistas, por verem confirmados os ódios irreflectidos e nojos imponderados que chegam mesmo ao absurdo de convencerem-se que existe algum tipo de relação entre dúbias ficções e pressentimentos de causas, originadas na estreiteza de espírito. Acometem-se com a auto-manipulação, o auto-engano, a insegurança tem desses entraves, ou benefícios, dependendo da perspectiva.

São os caprichos dos vossos egos, após forçarem a entrada na abrangência de algum conjunto facilmente identificável e seguramente reconhecido de crenças, que reduzem a plataformas enfermas as possíveis perspectivas alargadas, agora diminuídas perante si. Neste processo persuadem o vosso entendimento a acreditar nas falsas, e em tudo precipitadas, relações das consequências finais que supõem observar, atribuindo a estrita culpa disso à aparição de oponentes concebidos na falácia, cujas projecções invadem o corpo granítico de gárgulas intimidadoras, poisadas nos beirais do distante telhado da consciência. E lá se fixam elas, que nem a propósito, mantêm-se intocáveis nos vértices de difícil alcance. Escusado será dizer que com o tempo dissipam-se as recordações que tinham validado originalmente o repúdio dirigido a esses ilusórios adversários, aos quais agora só têm a agradecer o facto de vos terem permitido o capricho de omitirem dentro de vós, porém parcialmente, o peso das desmedidas inseguranças pessoais.

Mas para melhor exemplificação, suponhamos então, num prisma abrangente, um cenário bastante usual da inter-conectividade de uma pessoa, desta feita subjugada às convenções unificadoras, com o resto do colectivo quando é preciso julgar uma situação, ou mesmo perante uma outra pessoa enquadrada em algum tipo de situação em específico. O comum é praticar-se a submissão aos mecanismos morais das noções restritas que, por aprendizagem, absorveram-se num misto de entrega ao facilitismo e à irreflexão para com um real leque imenso de parâmetros possíveis. Procura-se sempre condenar sem conhecer realmente as razões. Só surgem no pensamento as consequências, talvez instintos primários de vingança (e as tantas outras respostas psicológicas propulsionadoras da inflamação do ego) derivado a não se compreender por inteiro o sujeito ou a situação em questão, alvo de apreciações morais. Quando pouco ou nada se conhece e nem se procura tentar perceber, só resta mesmo replicar o ódio vindo do desassossego de não compreenderem o meio alheio a vós mesmos, e sem contemplação alguma convencerem-se do ardiloso benefício dessa reacção. Assim dita a crença social, e na mente de quem o faz, a convicção de que se está a agir correctamente, ou seja, segundo os propósitos sólidos (na aparência) por todos partilhados, provoca a abnegação das culpas que surgiriam caso se aprofundasse num processo avaliativo onde entram em jogo as verdadeiras relações de todos os factores que conduziram alguém, ou algo, à hipótese de um comportamento específico observado no final, seja ele correcto ou não e tendo em conta que mesmo essa póstuma avaliação moral provavelmente já se desvirtuou derivado ao minimalismo interpretativo das consciências segundo o que é o mundo externo à pessoa.

Perceberás ainda que a humanidade civilizada tende sempre para a prolongação dos critérios conciliadores da sua mediocridade, ou seja, das tradições tanto morais como culturais que a compõem e perpetuam. E na tentativa de proteger as suas convenções, por habituação instintiva, sente-se constantemente no direito, aliás, no dever de desprezar os guerreiros da irreverência Individual, perigosos destruidores de estátuas e barreiras tidas como eternas. Terás de aceitar que o comum subordinado não se rege pela objectividade da razão nem por revelações fundamentadas, não valerá sequer a pena tentares desmoronar as certezas que ele segura como escudo, nada o fará demover, nem mesmo o mais profundo golpe alado da verdade, ou tão pouco os mais inspirados argumentos estilhaçarão a armadura de falácias usada como limite impermeável à atmosfera mordaz de uma realidade despida de enganos.

Esclarecido este ponto, conclua-se, as Verdades não são lisonjeiras, definitivamente também não são proveitosas, e muito menos servem como benefício ao Humano, individualmente considerando. A Mentira, por seu lado, a criação de fantasias que sustenham a harmonia de estarem iludidos e de crerem nas inverdades como controladoras da dimensão onde se mantêm, isso sim trás prazeres formosos e banquetes de satisfações. A verdade não apazigua, é insípida, inoportuna, e provavelmente se a maioria a vislumbrasse, mesmo que à distância, no primeiro instante ajoelhavam-se paralisados a implorar, entre prantos aflitivos, para que ela, juntamente com as multifacetadas efígies que a acompanham, se fossem embora o mais instantaneamente possível. As suas expressões são terríveis, e antecipam grotescos corpos ainda mais medonhos.

Compreenderás agora a razão de escassos serem os aventureiros que se arriscam a entrar em mim, o Templo da Perpetuação Humana. Aqui só te esperam terrores, um lamaçal de dúvidas, e quem deseja isso? Eu nada escondo, as minhas paredes nada ocultam, já pensaste se não és tu e os teus semelhantes que delas se escondem, e que de mim fogem?

E após tudo isto que te transmito, acreditarás em mim, ou em ti? Um misto dos dois? Em Nenhum?

Antes de responderes, a única precaução que te peço é a seguinte, nunca te esqueças que a expressão da realidade não se divide apenas numa ou duas aparências unilaterais, ou bilaterais, longe disso! Tanto quantas forem as perspectivas existentes, tantos serão os seus fragmentos gerados, e isso por si apenas define o mínimo algarismo a considerar, o ponto de partida, nunca o ponto de chegada.

Procura sempre sub e sobre interpretações, persegue quantas dimensões forem possíveis, nunca aceites que os rios se sequem, que as correntes cessem. Tudo é tangível a níveis infinitamente exponenciais, mergulha nos oceanos profundos, foge quantas vezes forem precisas para fora dos teus domínios, vislumbra-te no interior e exterior de ti mesmo, aprecia a dança magnética que dai surge, nada mais te peço. O resto só os teus desígnios te ditarão. Agora vai-te! Entrega-te às minhas paredes, ao meu chão, ao meu tecto, defronta-te com eles em heróicas batalhas sangrentas, vence-te a ti mesmo e esmaga os teus tronos logo de seguida se quiseres. Ou abandona para sempre, temporariamente, o que seja, as minhas galerias, os meus corredores, tanto faz…

A escolha é tua… E por agora, este Dólmen remete-se ao silêncio.”

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TODOS OS TEXTOS POR:
Bruno Abgrund

ILUSTRAÇÕES / PINTURAS POR:
1ª (Capa) - Otto Lange (c. 1919)
2ª - Pedro Esteves (2005)
3ª / Contra-Capa - William Blake (1795 /1794)