8 de novembro de 2010

ZINE #7





O COSMOS DESERTOR

Existem dias em que o sol nasce sobre as nossas costas e dele nada testemunhamos sem ser o momento da queda vencida. Consegue ser grotesco o traço delineado, forma ásperas linhas descendentes, esticadas perante o entorpecer do lusco-fusco. Tal é a pressão exercida que quase se rasgam os horizontes, acumulam-se renúncias vibratórias enquanto as nuvens se acinzentam, a serenidade olvida-se na exaustão, acompanha as danças vergadas do desalento, movidas por sinfonias de agitações aflitivas. Mas fixemos por agora a noite precedente à amálgama das derrotas pintadas no embaraço de alturas como esta, o céu já escurece novamente e as indagações reminiscentes têm de eclodir para acender fogueiras. Procuro galhos e lampejos que faísquem no gelo vindouro.

Lembro-me enquanto estendia as mãos enrijecidas dirigindo-as até ao crepúsculo na tentativa de segurar constelações encarceradas no infinito. Queria alcançar a essência primordial que nos sustém, a substância distante do nosso ser, ambicionava tê-la próxima dos meus pés, mas o líquido tranquilizante escorreu-me por entre a tremura dos dedos, das tentativas falhadas apenas sobejou a frustração do que nunca possuirei. Desistindo lá adormeci, passivo na resignação sonolenta, estava cansado da inutilidade das minhas instigações, procurei refugiar-me na esperança de um repouso que me petrificasse. Assim pensava, mas enganei-me. Ao despertar nada restara das roupas sem ser farrapos, o sangue de ataques inesperados secara, alguma perversão sonâmbula com certeza invadira as fortalezas do subconsciente. Lancei-me na perseguição de vestígios que me desvendassem tamanho assalto sorrateiro, poucos eram os indícios, das memórias só avistava fragmentos. Foi então que distingui a presença de risos ignotos crescendo nas sombras, as gargalhadas borbulhavam em aproximações insistentes cercando-me de tal forma que de mim só restou uma ilha, um chamariz de náufragos indigentes que afundaram a sua própria barcaça fantasma unicamente para terem o pretexto de me espezinharem. Concluí que na devoção à minha jornada tornara-me um invasor, tentara saquear-lhes o que de mais precioso defendiam, e num motejo clandestino essas antigas almas ofendidas decidiram inverter os papéis. Soubessem elas que nada protegem sem serem cofres de indecifráveis e espessos enigmas cujo único propósito é traírem-nos enquanto lhes somos fiéis. A sapiência é uma viúva negra, glória nenhuma nos espera na extremidade das suas quelíceras gotejando veneno.

Consomem-se esforços inúteis no anseio logrado por significações absolutas, em vão, eis a praga do pensamento, a ridícula causa da existência no confronto da sua origem e dos destinos para onde se tenta catapultar. O ímpeto poético das interpretações universais motiva-nos a adivinharmos alguma conectividade indissociável entre nós e a matéria circundante, pretendemos ser uma parcela celular de um todo unitário complexo, e talvez o sejamos efectivamente a um nível material, mas basta-nos penetrar na experiência do metafísico, dissecando as interpretações simbólicas conhecidas, e compreenderemos o carácter irreconciliável entre os sistemas explicativos e os objectos assim exprimidos. O humano perde-se no vício da paixão de si mesmo, ilude-se numa inconsequência própria de Narciso ao dirigir-se aos mares tumultuosos, pensando encontrar espelhados nas ondas agitadas os reais contornos do seu semblante. Ele esquece-se, na turbulência os reflexos acabam destorcidos, as imagens constrangem-se ao serem expelidas.




O ATAQUE DA POSSESSÃO

Algures entre o marasmo do mesmo de sempre porque tem de ser que é a rotina fatigada e os fugidios momentos de possessões da consciência, sempre nos atacará, em algum instante inesperado, o sonho da mais irredutível das dúvidas humanas. Afinal onde se esconde o absoluto, e o que é feito da verdade, para onde foge ela? Terá sido esquecida? Alguma vez existiu ou existirá sequer? Tais dúvidas são um encanto impaciente, precipitam-te a indagar respostas satisfeitas, cobertas de espinhos desleais. És levado a fixar a distância de céus errantes num torpor abominante, tantas são as brechas lá em cima que parecem narrar fábulas sedutoras, infindáveis são os longínquos astros efervescendo de sensatez eremita, e afirmas ser uma afronta a sua prudência quando lhes imploras por palavras esclarecedoras e nada te entregam, queimando-te a testa como aviso para te afastares. Por vezes nada há a fazer sem ser espiar os miriápodes do teu próprio desconsolo solitário, procurando as covas asfixiantes onde se sitiam as trémulas presas, mas quando te arriscas a penetrar nessas estreitas grutas da descrença e da nova crença, perseguindo diamantes amaldiçoados como que por tentação, nem sempre és encaminhado rumo ao fulgor de riquezas prometidas, provavelmente fruto de fantasias. É constante o perigo das galerias onde te esperam anfitriões vingativos, sentinelas de expressões incógnitas. Tentas descortinar-lhes as intenções mas eles invocam choques avulsos contaminadores da bonança, perturbando-te a existência, é seu o dever de estilhaçar as estruturas palpáveis das imediações onde rastejas. Nas cavernas já só apoias os pés em estalagmites laminadas, precisas de sentir os nervos a serem dilacerados, as ferroadas de gelo são necessárias para entenderes que nenhuma questão profunda deve ser perpetrada de leve ânimo, é abominante, mas crucial, são as dores de parto do pensamento assassinado e renascido. O próprio corpo acompanha a sugestão psíquica da incredulidade, sentes progressivamente a carne a distender e a comprimir, rasgando a pele, corrompendo as próprias barreiras físicas onde te mantinhas detido. És agora extensão passageira e irrequieta tão imediatamente assustadiça, são pavores mortíferos, absorventes, os olhos centrifugam-se frenéticos, a visão eclipsa-se e desliga-se de seguida com a sobredosagem de estímulos. Hesitas na abstracção de nada saberes e de tudo ser possível somente porque sim, porque queres, ou não queres e te dá jeito assim sendo, talvez o universo conspire, quem sabe algum deus cínico esteja na origem da aflição, provavelmente já te arrependes de teres acelerado o passo em direcção às falésias que desaguam para além do óbvio. Seja como for foste amarrado ao dorso possante de uma fera galopante coberta por um manto de pêlos que irradia o calor de extravagantes demências coléricas, a velocidade transmuta-se numa exponencial cavalgada de ira em direcção ao infinito do vácuo fatalista, não existem rédeas que interrompam a sua marcha frenética. Houvessem tambores compulsivos acompanhados de cânticos ascendentes e achavas-te a vítima de algum ritual macabro, professado por criaturas uivantes do antigo oculto, vociferas gritos mudos e nem tu os ouves, porém sabes nunca ter gemido medos tão estridentes como agora. Mesmo assim optavas pelo silêncio se te dessem a escolher, era preferível a sua piedade aos timbres agudos circundantes, ruídos magnéticos delineadores da constatação anti-sensorial dos ciclones famintos pelas descargas eléctricas arrancadas à força da tua espinha dorsal. Suspiras alto e fundo, nada faz sentido, a carne volatiliza-se, a mente derrama-se no tumulto, os pensamentos estão espalhados nos túmulos da discórdia, o tempo parece ter-te abandonado e quem te dera avistar uma superfície rugosa onde pudesses cravar as mãos. Mas tão subitamente como a chegada desta evasão ofegante surge um assobio afiado anunciador do retorno à calmaria das origens, voltas de novo aos limites concretos e terrenos da percepção sensorial, parece que nada disto aconteceu e as únicas evidências espelham-se num desconforto residual, são as únicas sobras nas quais afundas os dentes. Estás suado, expectante por respostas, o coração tenta forçar caminho através das costelas tamanha a ânsia das palpitações cardíacas, contudo percebes ser isto uma reacção ardilosa face à violência de questões ancestrais, não te deixas intimidar pela carga mística, quase divina, que tal experiência te poderia sugerir, tentas ter calma, tudo não passou de uma cilada cerebral, um vexame impetuoso à fuga da quietação, desta feita te convences! Por vezes tais convencimentos trazem regozijo, outras vezes são plenamente desmotivantes, qualquer alteração completa-te e entretém, mesmo quando te esvazia. És passível de encheres os rios que te atravessam com os elementos que bem entenderes, sejam eles saibro ou água ou chamas, é o sabido. E pouco ou nada se sabe, mesmo o conhecimento dito absoluto não passa de um mirabolante sarcasmo, tão passageiro como um império construído de areia onde todos os vassalos aclamam a vanidade do eterno, mero trâmite ultrajante. Ninguém ousa assumir a finitude dos becos sem saída.

Somos activados de quando em vez pela penumbra destas cépticas experiências sufocantes. Pensamos algures, talvez por milissegundos eternizados, que alcançamos as respostas exactas das esquivas questões da vida e da morte e dos interregnos entre elas, mas sejamos sinceros, nunca escaparemos à ambivalência dos mal-entendidos, e mesmo esta afirmação por si só já tem demasiado de certezas contidas em si, e como tal, não passa de um engodo. Os subterfúgios esperançados afastam-nos do universo despido, tanto de dentro para fora como vice-versa, de pouco ou nada nos servirá insistirmos, tentativa após tentativa frustrada, sabermos, ou querermos saber os segredos retidos nos objectos e na metafísica, tudo liberta um odor pungente de incompreensibilidade, acontece que o humano disfarça a náusea da decomposição com a doçura do conhecimento mutante. O nosso olfacto, como lhe compete, só desperta no aperto dos atalhos e das veredas.



A ACRE PAIXÃO DOS OPOSTOS


A ilusão, como se vai retendo desde sempre, sucessiva, infecciosa e contínua no pensamento humanizado, equipara-se a uma sentença permanente do acto cognoscitivo elaborado, e talvez pertença mesmo a um qualquer enredo bioquímico de comando neuropsicológico ao qual a razão não se pode dar ao luxo de deixar para trás em tal sinuosa caminhada por onde prossegue. Essas duas assombrações não são dissociáveis, distraem-se mutuamente, preferem prestar homenagem ao consórcio duradouro de palácios quiméricos onde quem governa acomoda-se indisposto nos seus tronos de espinhos, sentando-se firmemente pela força das coroas de pedra usadas como fardo. E talvez elas se dissolvam mesmo uma na outra, afastando a possibilidade de se avistar os limites fronteiriços onde ambas residem. Possivelmente serão muralhas desde sempre inexistentes, para sempre fantasmagóricas, o nosso mundo fica assim ancorado à deriva nos vastos oceanos sem horizontes, a terra firme não passa de um desejo, as águas de um mistério.

Sabemos ou sentimos nós, através de alguma sensação enigmática e vã de justiça, que a verdade, ou seja, a pretensa compreensão sagaz da realidade, tem o seu simbolismo cravado na representação determinista porém armadilhada, pejada de lacunas traiçoeiras, onde todos os ossos formam curiosas geometrias provocantes adivinhando gesticulações escarnecidas na humilhação intocável por ser irreflectida, eis a sua inocência. E apesar do apetite romanesco das inconsciências flutuantes levá-las a pensar que avistam a miragem de tal dissociação escandalosa, não seria prudente, nunca, permitir que a verdade noctívaga despertasse numa alvorada anterior aos convencimentos vespertinos do engano pressentido, antes mesmo da chegada do orvalho. Ninguém imaginaria a queda das gotículas madrugadoras se a folhagem estivesse sempre satisfeita, é preciso que esta queira murchar anteriormente. E muito menos erguem-se ramos embalsamados segurando tais parábolas, a seiva precisa de escorrer e ascender nas condutas de madeira quebradiça. Ora isto revela muito, lança-nos para a presença constatada da irrealidade que engolimos como narcótico de espírito, sabemos nós estar num útero do qual não ambicionamos sair, as paredes servem como consolo e anulam as vertigens da incerteza. Nunca a verdade se afastaria na ponta dos seus pés mesmo que quisesse… Oh e quanto ela o quer! Jamais ela abandonaria a sua oposta alma gémea durante o seu sono, absorta na imprudência, apesar de ser esse o fausto da sua vontade. Seria a fuga sem remorsos, sem as sacudidelas inquietas da culpa degenerativa. É um amargo matrimónio repousando no aperto dos lençóis do leito da inevitabilidade, um amor odiável e vulcânico, mas que nunca entrou nem entrará em erupção, apenas se vai consumindo. A lava contém-se, o fogo retém-se, e o desdém esconde-se atrás de sorrisos falsos onde poucos esforços são feitos na insistência de os encobrir. No fim de tudo isto gastam-se as montanhas rochosas e ocas, para mais tarde enterrarem tudo o que até aqui sustiveram e esconderam.



O ESQUELETO DE OUROBOROS
(CÍRCULOS DO ETERNO RETORNO)

Revelado está o apego amedrontado do cobarde humano involuntariamente escarnecido pela apoteose lamacenta de uma obstinação aparente. Quem sabe não venha a provocação que o atemoriza de um mero trauma da vida desentendida, ou talvez seja somente a resignação à infertilidade da existência infrutífera. Seja como for ele cai no desconhecimento, lago íntimo das gargantas convictas que muito pensam vociferar. Também nos desfiladeiros equilibra-se o espírito encarcerado que muito pensa estar em movimento, ele assemelha-se aos viscosos moscardos varejadores, continuamente frustrando a passagem contra vidraças desde sempre fechadas. A condição do humano é, portanto, uma falcatrua inebriante, nem mesmo quando se incendeia a sua cómoda mansão, esses vértices e arestas do consolo constrangido, ele procura novos lares, não. Prefere esperar no cume das ardentes labaredas que irrompem céu adentro, convencido que dali nem uma única parede acabará corrompida, e aguarda pelo momento em que as línguas oblíquas de fogo se fatiguem até à extinção. Essa tal comodidade lazarenta do pensamento, qual sedentarismo coberto de pústulas, impele-o, após as chamas estarem extintas, a adormecer de novo sobre as ruínas e as cinzas de onde sobram apenas certezas carbonizadas, para daí nunca voltar a sair. Porque mesmo se quisesse afastar-se, já a sua consciência deixara de possuir pernas, estava absolutamente faminta, e que culpa teve ela da sua miopia avarenta? Revirou os olhos, direccionando-os para baixo, como lhe foi designado aliás, e viu-se forçada a sacrificar sem cerimónias os seus singulares membros locomotores, devorando o único meio de fuga que tinha disponível. O instinto de contrariar a fome forçou-a a este sinistro desfecho precipitado, mas afinal, quem deseja o tormento da complexidade fronte a soluções imediatas, mesmo que trágicas? Apenas os tidos como loucos e irrequietos suponho, mas sendo estes uma ocasional excepção, deduz-se, toda a intriga aqui exposta faz parte de uma irónica ordem natural assente em pressuposições, súbdita do mínimo esforço conveniente.

No decorrer do enredo descrito pensa-se estar a assistir a uma transposição inspirada das capacidades humanas, o organismo pensativo submetido a metamorfose, um processo adaptativo a tender para a máxima coerência, porém os moluscos da história continuam informes e são apenas os seus tentáculos que se estendem e multiplicam, aconchegando-se enquanto estrangulam as imediações. A raiz do incompreensível como sempre mantém-se, todas as reacções obedecem, sempre, à malícia intrínseca da consciência que definha entre o racional e o irracional, é o mau-olhado rancoroso com o qual o universo fixou o humano, amaldiçoando-o, um feitiço rompido como ferida aberta desde o início dos tempos, desde do visco primordial do pensamento. A própria suposta evolução é disfarçada sobre os clarins dissonantes de hinos que atraem aves necrófagas planando nos ventos de sinas enfurecidas, querem submergir o bico aguçado nos novos dogmas semi-inanimados ainda convulsionando, nados-mortos insistindo na regurgitação improfícua do seu tosco nascimento. Perceba-se, a cinética das mentalidades só se acciona quando os esclarecimentos obsoletos deixam de ser suficientes e o consolo dos aglomerados começa a desvanecer, neste ponto demonstra-se imprescindível proceder à canalização das consciências rumo a novos formatos do absoluto unitário, atravessa-se aquedutos onde o universal esmaga o particular como sempre, e no fundo apenas se substitui a carapaça de deuses colectivos. Mudam-se os trajes cerimoniais, mas os corpos continuam decrépitos por baixo de toda a pompa, o seu vigor é tísico, ninguém sabe qual a poção que os tem mantido vivos durante tanto tempo num quase estado vegetativo. Esta é uma transição esgotada na imagética e na aparência de sistemas morais e de ocupações racionais, haja quem se dedique a escavar buracos que cheguem às bases dos alicerces para somente se depararem com fundações que continuam carcomidas. A designada evolução assegura a sua sobrevivência nos altares de rituais cíclicos ininterruptamente retornados, durante o clamor das rezas procede-se à extensão do já existente e adequa-se o estabelecido às novas profecias como forma de ilusionismo, pretende-se a sugestão de que o comportamento progride, e todos se regozijam incólumes, seguros das capacidades divinizadas da humanidade. Todavia recolhamos as cortinas do teatro por nós encenado para dar início ao desnudo espectáculo cénico que traduz a intimidade das nossas entranhas, no lugar das vísceras os globos da sapiência giram em torno de eixos antropocêntricos colidindo somente por pertinácia, insistimos na superioridade intocável da nossa condição porque de alguma forma se tem de ocupá-la, entretê-la, e nada mais eficaz que uma plateia de vangloriadores que ensurdeça os ouvidos com aplausos. Mas eu olhei de relance para o interior das algibeiras desses interesseiros bajuladores, estavam repletas de veneno e a hora do banquete ao qual foram convidados aproxima-se. O anfitrião corre perigo e foi alertado, está tão extasiado com o culto a ele prestado que desdenha os avisos, ordenando o enforcamento dos mensageiros cujas cabeças servirão como prato principal no festim de lacunas que é a nossa passagem por esta vida.




FUGINDO DAS ESTRADAS QUEBRADIÇAS

A sobrevivência do género humano possibilita-se precisamente devido à imprudência do seu conhecimento que simultaneamente se demonstra como a prudência do saber viver, despreocupadamente, seja. As ordens são evitar raciocínios aprofundados, nunca concluir além do necessário, obstruir a perspicácia. Quem desobedece às directivas anteriores arcará com as consequências, não será encarcerado mas sim liberto, e a liberdade do pensamento é a pior das amarguras, passamos a ser os principais intervenientes responsáveis pela nossa condição deformada, envolvidos directamente na anulação do concreto e na morte da sua misericórdia. Nenhum discernimento voltará a ser complacente connosco, a substância universal perderá a sua cortesia tornando-se carrancuda e irredutível, sempre pronta a vexar-nos, sem tréguas. Os milissegundos de pasmos tortuosos para com as contradições da existência e do universo, comummente passageiros, fixar-se-ão agora na permanência. As barreiras dissuasoras à entrada da estranheza cansar-se-ão de estar erguidas, abatendo-se. Exércitos inteiros de objecções incómodas marcharão sobre nós.

Quem tenha realmente experimentado compreender-se a si mesmo e ao que o rodeia conhece bem a aflição de alguém condenado a secar um rio com uma peneira, foi sua a escolha de desobedecer ao convencionado, perdendo o direito de prosseguir sereno nos trilhos onde a selvajaria indistinta é escorraçada com o ceptro da conformidade, a piedosa rainha. E agora, que se chega fronte a mais uma bifurcação separadora do certo e do errado, como escolher sem o aval de tal monarca? De um lado adivinham-se planícies floridas afagadas por suaves melodias de sereia, do outro uma estrada envolvida de árvores negras latejando em ecos de agonias, em ambos o cinismo irradia. Pois a mim apetece-me desbravar caminho longe desses desígnios, abrirei carreiros intrépidos para somente os ver a serem devorados imediatamente a seguir pela densa ramagem enfurecida. Saberei sempre que ao me enganar não é com pouco esforço que poderei voltar atrás, e perder-me sem possibilidades de retorno torna-se um trágico desfecho provável, o que estranhamente, faz o meu espírito transbordar de alento…


----------------------------------------------------------------------------------

TODOS OS TEXTOS POR:
Bruno Abgrund

ILUSTRAÇÕES / PINTURAS POR:
1ª (Capa) - Ernst Kirchner
2ª / 3ª - William Blake
4ª - Luigi Serafini