15 de dezembro de 2009

ZINE #5




O HUMANO EM RUÍNAS


Profundamente e sem grandes escolhas, vemo-nos enclausurados em mais uma das incontáveis valas comuns que, à semelhança de penosas armadilhas silenciosas, esperam pacientemente pelo momento de distracção em que sucumbimos às catacumbas dos seus malditos estômagos vorazes, essas fornalhas carnívoras onde a histeria é soberana e o pânico é difuso, agindo como os alquímicos catalisadores que metamorfizam a lama e a terra circundante até ao estado findo de rocha inquebrável, do dogma inquebrável, seja.

É este o foço do qual não se vê o fundo, onde as vontades se petrificam e todos vociferam num misto de agonia e felicidade pela chegada profética da alienação que conforta amargamente através da proibição absolutista do livre pensamento individual à face da terra, que é o empecilho ao projecto macabro de anulação das consciências humanas, assim ditou o Oráculo da modernidade amoralista sobre o qual nos ajoelhamos e rezamos. São tantas as garras invisíveis e afiadas que nos cravam na carne atormentada, é tão altivo o voo da fantasmagórica ave de asas sinistras, que nos arranca os olhos com as suas bicadas ferozes, deixando-nos no abandono, em plena cegueira, nas trevas dos desertos inférteis da sociedade, sarcófago onde reina a morte incrédula dentro da vida, até que se destronem os horizontes...

Cobertos da poeira e do mofo da inacção fervilhante, mais parecemos os elos cravados de ferrugem e fatigados pelas pressões e perturbações incessantes, mas que pelo estranho incentivo do medo lá continuam a formar uma corrente cuja extremidade se encontra longe do mais periférico ou atento dos olhares, presa nos fundos invisíveis de mares tumultuosos onde, num caldeirão que quase explode pelas estribeiras com os líquidos turvos de tudo o que existe de maligno na humanidade, se prepara o néctar pestilento do obscurantismo delirante que os povos bebem a tragos nervosos como se possuídos por uma insaciável sede de ignorância.




O Estado, qual enorme cão vassalo a quem ensinaram truques fáceis pelo ímpeto condicionante da violência, prega sentenças ladrando raivas, mentiras e ilusões ao servo que é o Humano, este que é sempre o mesmo ser tísico encurralado a um canto, o que nunca nada pode fazer perante qualquer tipo de circunstâncias adversas, ele próprio já forjou o cárcere que o protege das dentadas dolorosas, antes estar preso por entre incontáveis muros labirínticos de valores e dogmas mais que ultrapassados, e sobre um telhado de mil telhas sobre outras mil camadas idênticas e sobrepostas, todas elas individualmente pintadas com a tinta das morais subnutridas desta sociedade obsoleta, antes tudo isso do que ser conduzido pelos ventos tempestuosos que trazem a liberdade. É o que sempre se imaginou como sendo “O” ideal de vida.

E bem, o tirano Capital segura pela coleira com mão de ferro e rédea curta o Estado frustrado que rosna contra o Humano, ele sente-se na obrigação de defender o seu dono cruel com todos os aguçados dentes amarelos que tem na boca, emanando um bafio de peste negra, lá desde o seu profundo interior visceral, carcomido pelos vermes e pelos restos de carne podre em decomposição. Mas esse sádico açoitador que lhe violenta os costados com um prazer lascivo esboçado na cara cheia de rugas, deixa-o brincar de vez em quando com um osso de aparência carnuda que ele, o rafeiro domesticado, pensa ser o poder absoluto, mas que não passa de cartilagem quebradiça, e ao mesmo tempo secretamente envenenada, só assim ele repousa e não se vira contra o seu inflexível proprietário.

Todos são felizes desta forma na casa em ruínas da civilização contemporânea... o fustigador severo, sem mais nada que possa fazer, ejacula-se constantemente no seu trono com a fera domesticada a dormir-lhe aos pés, e o possante canídeo lá se vai ocupando numa resposta à frustração subconsciente das chicoteadas que leva no dia-a-dia, cada dia com mais intensidade, rosnando contra o escravo Humano quando lhe apetece ou quando é atiçado para tal, e até mordendo bastante em momentos de maior frustração ou rancor. O entediado chicoteador adora sinceramente, e em silêncio soberano, aquilo a que ele chama de a nobreza da sua rotina, e isto porque o magnífico, o notável e libidinoso Capital, está sempre em sonolento aborrecimento, é a maior das maldições a que está submetido, nunca há nada de novo para fazer, já tudo está alcançado e já tudo se possui... pelo que só visões como esta, a de um feroz animal inconsciente mordendo e ganindo contra um mártir atormentado, lhe dá a tesão suficiente para continuar a sua existência doentia. A mais triste das verdades, porém, é que só o tísico vencido, o Humano subjugado ao escárnio, cai no esquecimento desta casa em ruínas da civilização contemporânea, onde os convidados se assemelham a vultos e assombrações medonhas, nefastos companheiros do Capital cujas identidades ou origens nunca são fáceis de apurar, mas cujos risos afiados e mordazes penetram no cérebro com a persistência da mais viscosa e nocturna das resinas.

A vergonha que simultaneamente é o orgulho Humano de se ser súbdito, obriga-o a ajoelhar-se, despido a um canto do seu próprio desprezo por si mesmo, achando-se incapaz de seja o que for para se elevar perante a existência tiranizada da densa neblina do sórdido destino a que foi submetido, e que invariavelmente não compreende porquê, por mais voltas que dê à cabeça. O silêncio é quase sempre constante para o vencido amargurado, ninguém fala para o servo, é intransigentemente proibido, sem ser para lhe relembrar a altos berros ou com furacões de latidos o buraco a que pertence e do qual nunca poderá sair por princípio, porque ele nunca iria conseguir adequar-se, ou pelo menos assim afirma o austero Capital na mais absoluta das certezas.

E dessa forma a perdição alastra como narcótico que adormece acções e pensamentos, os abismos precedem-se a novos abismos ainda mais insondáveis, a queda é eterna e gélida... Mas é no desalento dessa queda que se começa a ouvir um murmúrio que vai crescendo aos poucos, porém sempre distante e imperceptível, até ao momento repentino em que, semelhante às badaladas risonhas de um sino que ecoam por todo o cosmos em uníssono, se ouve o timbre quente da alvorada estridente:

“Vá Humano sofredor, levanta-te de vez! Quem to diz é a voz da tua identidade Individual impossível de calar e que sempre esteve contigo, mas que foi esquecida faz já algum tempo. Contudo, cá estou eu de volta finalmente, pronta para agitar a dimensão a que te acorrentaste... Eis que chegou o chamamento profético da tua origem ancestral!”

E assim de sobressalto acordas, sorrindo pela primeira vez em milénios, já não era sem tempo...

“Agora, destrói as centenas de muralhas labirínticas que edificaste em torno de ti, avança no teu caminho sem remorsos, desfere impiedosas marteladas sobre as mil telhas das mil camadas que te soterram neste buraco vergonhoso, voa daqui para fora!”

E assim o fizeste, as muralhas caíram, e por cima dos fragmentos do telhado das mil ilusões estilhaçadas te ergues, agora apertas o pescoço do impiedoso rafeiro que sem pensar te ataca. Cravas-lhe os teus próprios dentes no seu tórax macio e nas costelas já desgastadas, deixas o sangue a escorrer e esperas que os ganidos de dor corroam o ar estaque desta sala empoeirada onde te encontras, para que assim o Capital desperte de súbito do seu sono convalescente de tédio. E assim acontece... Mas observa! Apesar da tua presença vingativa ter sido já comprovada, ele ainda se masturba à tua frente sem o reparar sequer... o quão instintivamente doentio este malicioso se tornou com o tempo, simplesmente ridículo! Ele está perplexo e confuso com o teu insano suspiro de vontade por sentir a pura da liberdade cristalina, mas ainda confiante de que nada lhe podes fazer para o atingir, ri-se na tua cara em altos silvos de zombaria. Porém, o opressor olha para baixo e repara incrédulo que já não tem o Estado domesticado a seus pés para o proteger, ficando chocado com a investida colérica que lhe desferiste, pelo que de instinto se levanta numa suada palidez, e pegando o chicote com o qual vergava outrora esse coitado cão sarnento, lança um ataque convulsivo e desesperado sobre o teu corpo despido.

Mas estas açoitadas não ferem a pele nua e espessa de um Humano possuído pela vontade pura de individualidade, e avanças sem pestanejar sequer, enterrando a facada da morte final, primeiramente no abdómen, e só depois no coração do obeso e sádico tirano. O Capital sucumbe agora nos teus braços soluçando num temor de sangue, e após imperceptíveis convulsões verbais delirantes, ele suspira por fim, dizendo de forma serena e límpida:

“Que tédio que isto é...”

Mas com tudo isto, o projecto do renascimento humano apenas está para começar, agora com os corpos mortos destes parasitas acendes a fogueira que presta tributo e faz vénias ao triunfo do espírito individual, com as suas cinzas fertilizas e cultivas as sementes endurecidas de uma nova sociedade superior, de indivíduos superiores! Constróis, com a pedra e a madeira da velha casa em ruínas da obsoleta civilização contemporânea, o místico lar renovado do ser humano agora plenamente orgulhoso da sua liberdade. Os campos são finalmente verdejantes e os frutos não podiam ser mais maduros, ó quanta diversidade e fartura! a Primavera da existência imaculada está aqui para ficar, espalhando as suas raízes até à mais alta e inalcançável das montanhas. As nuvens carregadas de cinzento-escuro de um passado de trevas sombrias fogem sem deixar rasto, o sol cresce dignamente e revela o brilho comovente de toda a beleza e sinceridade desta vasta planície de vida...

Por fim! Já podes fechar os olhos em repouso. A tua obra está completa...

Calmamente abres os olhos de novo, mas algo parece estranho, deslocado e repentino, sem dúvida é isso tudo...

Outra vez não… O cheiro é fétido e tresanda a mofo, as grades continuam perplexas e frias à tua volta, o cão Estado descansa com expressão inalterada de ódio recalcado na sua face de profundas cicatrizes, e atrás dele eleva-se o trono dourado e pálido do tirano Capital, que continua a ejacular-se constantemente, afogando-se no marasmo da rotina sonolenta, da nobreza nauseabunda e da luxúria fetichista por sofrimento alheio...

“MAS AFINAL... FOI TUDO UM SONHO?!”





[M]UTUAL [A]SSURED [D]ESTRUCTION

Todos os que se debruçam na compreensão da humanidade dos tempos de hoje, e mesmo os restantes, já compreenderam por certo que o controlo recai austeramente sobre a civilização (esta por agora vista de uma perspectiva mundial, independentemente das várias culturas que se queiram ou se possam considerar) da mais diversa panóplia de formas disfarçadas que, por sua vez, se possam imaginar também. Exemplificando de forma breve, existe, por um lado e como sabido, a complexidade da ambígua rede legislativa, cuja instauração e para quem realmente se aplica ou se destina são ambas questões pertinentes e legitimamente duvidáveis, já por outro lado a bipolaridade de produção e consumo, e todo o processo de oculta escravidão implícita que dai se sucede, não deixa de ser igualmente bem sucedido, e isto só para citar as máscaras mais óbvias que nos olham de todo o lado, petrificando-nos os movimentos e os pensamentos, ou simplesmente obrigando estes mesmos a serem direccionados para causas que nenhum interesse têm numa real existência altiva onde nós somos nós próprios, e que revelam a forma como nos avaliam segundo a nossa empregabilidade, a de meras ferramentas ou peças de uma engrenagem cuja única função é serem desgastadas até posterior substituição, assim sucessivamente. Mas então, dentro das incontáveis possibilidades e aplicações que sirvam para instaurar a opressão de forma sucinta e eficaz, tanto da acção como do pensamento, e já que o catálogo é extenso e o patronato ou a classe política também não deixam de ser sádicos o suficiente para isso, qual será uma das formas mais imediatas e drásticas para amordaçar a civilização moderna e garantir a continuação de mecanismos industriais maquiavélicos?

O isco não poderia ser mais óbvio, e anda em torno da dinamização, numa situação de conflito, do absurdo armamento nuclear e/ou bioquímico, tal como o conhecimento concreto, experimentado seja, de resultados pragmáticos que provem a devastação sórdida destes instrumentos massivos do juízo final. Basta assegurar a possibilidade da completa aniquilação de um território externo ao hipotético império que blasfemou ameaças algo vagas. Mas antes de prosseguir, convém referenciar que os impérios não estão aqui caracterizados como sendo países propriamente ditos, as nações são mais é o manto pesado que as identidades carnívoro-económicas usam para se esconderem do povo, e assim poderem caminhar sem que nunca sejam avistados, prescrutando pelas sombras. As delineações territoriais que de forma não muito concreta gerem os limites físicos destes impérios, ou que estipulam o foco admnistrativo dos mesmos, coincidem, mais por conveniência, àquilo que se conhece como sendo os limites das pátrias de origem, mas é sempre de relembrar que a contaminação imperialistica dos tempos de hoje, pela mão da gélida moeda, já não olha a fronteiras, logo, não se pense que a acção penosa das identidades económicas referidas se esgotam na noção do que é uma suposta nação e suas componentes culturais.

Esclarecido este ponto, impõe-se aqui uma nova questão. E se o inimigo possui semelhantes ferramentas de aniquilação? E se todos os grandes impérios, ávidos de violarem-se uns aos outros, possuírem semelhantes ferramentas? Não seria isso algo, de certa forma, demasiado perigoso para os mesmos e, portanto, inviável? Na realidade mais simples ainda se torna o raciocínio com a inserção deste factor, e acaba por ser uma conjugação até essencial na equação global esperada. É a partir da simples presença de uma ideia palpável de mútua aniquilação que assegura-se o controlo e da mesma forma o condicionamento para a aceitação de determinadas situações que de outra forma seriam injustificáveis, instaurando-se um medo que caminhe sorrateiramente pelas mentes habitantes de todo o lado, permitindo percursos de estabilidade, livres de dispensáveis azáfamas contestatárias, de forma interna, ao patronato imperialista e ao comum fantoche político de um reino em questão, que inconscientemente se escraviza a si mesmo perante o demónio do poder, esse fantasma ilusório que ironicamente assombra a humanidade e dita, em tudo, o que esta foi no passado, o que é no presente e o que virá a ser no futuro.

E inserida mais esta noção no produto equacional das formulações opressivas que se começam a adensar, é-nos permitido fazer um novo paralelismo na colossal cabala da qual podemos, no máximo, ser atentos espectadores (ou lunáticos especuladores! Que talvez é como os impérios preferem chamar a quem se preocupa com estas questões, como parte das tácticas diversivas para o silêncio não ser incomodado). O que pensar então, de um prisma mais céptico, da capacidade estratégica que passa pelo conhecimento mútuo de que um determinado arsenal não poderá ser utilizado, em termos práticos, derivado da possibilidade de conjuntos impactos apocalípticos das respostas adversárias? E o que se pode conjurar mais ainda dos acordos que ocorrem atrás dos bastidores da guerra, entre facções opostas? Estarão eles assim tão seguros, talvez até em demasia, da previsível tacanhez populacional, que no fim nem se esforçam em disfarçar de modo mais criativo a óbvia causalidade económica que advém a partir da actividade bélica? É que não é preciso ser-se nenhum visionário para perceber que nós somos o carvão lançado para a caldeira duma indústria sem escrúpulos, e que a manutenção de específicos alvos de batalha, accionados pela carta-branca da paranóia nuclear e bioquímica, têm como objectivo final a elevação dos sistemas imperialistas mais aptos para tal sem que para isso seja necessário abdicar-se da estrutura hierárquica que tanto beneficia os manipuladores primários da grande máquina civilizacional, canalizando a produção dos bens essenciais para a eterna guerra, que de outra forma iriam revertidos para uma hipotética harmonização social, o que não é definitivamente o objectivo desejado ao sistema reinante, já que seria, de forma bastante concisa, a causa directa da sua queda.

E eis que mais um avanço no produto equacional nos é facultado, para tal apenas basta correlacionar as parcelas acima referidas, e concluir que para a existência de uma mútua destruição assegurada, a tal força motriz que prolonga guerras, é também necessária uma mútua procura incessante de ambas as facções opostas por equilíbrios bélicos, o que invariavelmente conduz à insistente produção de novo arsenal e à actualização ou modernização daquele que é considerado obsoleto, liderando a passo lento a sociedade para a prolongação da miséria e, adicionalmente, do terror gerado pelo conflito.



A fórmula de mais um controlo está lançada, portanto, e não é a aplicação concreta do armamento apocalíptico que se pretende, mas sim a injecção de ansiedade no cerne da população pela possibilidade vaga de tal vir a acontecer, o que abre as portas à base psicológica globalizada que permite a aceitação, de ânimo leve, do trágico acontecimento que é uma guerra. O mais irónico é o benefício ser, como referenciado, apenas da elite governante de um império económico em questão quando visto por uma perspectiva concreta, ou seja, controla-se o aglomerado civil desse domínio e dilata-se a sua pobreza, mas ainda assim esses aglomerados civis pautam por defender os interesses dos malévolos espectros que o atiram para o foço… que bela que é a coerência unânime do artificial patriotismo!

O conceito de nação foi totalmente obliterado e já não existe, para o bem ou para o mal, a tradição já não passa de um produto, a identidade de actos heróicos passados assumem somente o papel de insuflação do raquítico ego colectivo de um país. Apenas a tirania capitalista prevalece e somente a moeda possui a autoridade sobre a guilhotinha, eis o carrasco encapuçado da nova ordem mundial…

Que não se mantenham as ilusões desta realidade!



PRÓXIMA PARAGEM: MECANÓPOLIS


Saindo da humildade desta vila do longínquo passado humano que outrora se enraizava na ligação espiritual fronte à Natureza e à terra antepassada, sítio onde todos repousavam num virtuosismo digno de eremita! Mas o silêncio aqui tem vindo a deixar de ser puro, cada vez mais se espalham os rumores trazidos pela nova estranha construção, causadora de espanto e alarido, a fechadura através da qual se vê o suspeito magnetismo que trás consigo o desconhecido.

Foi erguida a sibilante linha férrea da evolução que fecunda a balbúrdia entre os povos e obriga todos a seguir o percurso sinuoso cujo destino é incerto e despoleta medonhas tempestades de desconfiança entre nós. Sente-se o fedor nauseabundo da arrogância e da hipocrisia a milhas lá para onde o caminho se estende, e como abutres que pelos vistos nos tornámos, ou que a presença do trilho da evolução nos obrigou a tornar, isso por si só já servia de atracção suficiente para não se pensar duas vezes em seguir em frente, ou talvez para baixo… só sei que a pique seguíamos! O facto é que não demorou até que alguns de nós se apressassem para incendiar a humilde vila em que estávamos, e num nervoso tornado de chamas os solos ancestrais do único lar que conhecíamos desapareceram como se nunca tivessem existido sequer…

Pelo que escolhemos entrar na carruagem construída com o processado minério gélido que pouco conhecemos, por um lado inspirados pela possibilidade de uma colectiva existência superior que todos poderíamos partilhar, mas por outro forçados na inevitabilidade de abandonar os terrenos nos quais os seus habitantes, feridos pelos boatos da suposta vida superior longínqua (porém acessível), se começaram a sentir diminuídos perante si mesmo. A inveja não hesitou em aliar-se com a fragilidade dos egos, digam o que disserem, foi esta a principal motivação que nos guiava e que acendeu as fogueiras incineradoras do passado.

Após cada um dos presentes ter encontrado um lugar sentado na carruagem de tom impessoal, um silêncio de dúvidas instalou-se de imediato, já que ninguém sabia propriamente o que fazer para accionar o complexo mecanismo locomotor, mas não tardou até que irrompesse no ar um ruído, ao início imperceptível, vindo de um altifalante que ainda ninguém tinha reparado, montado no topo da parede frontal, perfeitamente centrado, quase encostado ao tecto de aspecto rude e trágico, e do qual aos poucos se começou a perceber as palavras numa voz robótica e monocórdica que foi recitando a mesma frase repetida da seguinte forma:

“Bem-vindos ao sentido único e sem retorno da evolução. Próxima paragem, MECANÓPOLIS.”

A voz automatizada que vinha do altifalante continuava a repetir pausadamente a sua sentença disfarçada de tom indiferente, e a atmosfera circundante começou a adquirir contornos que se podiam descrever como sendo um objecto absolutamente palpável, um sólido alarmante de sufoco castrante. A ansiedade dos que me rodeavam percebia-se telepaticamente, todos partilhavam do mesmo receio, mas mesmo assim, e apesar da carruagem encontrar-se estática e a porta de saída estar ainda aberta, ninguém se dignou a abandonar o seu lugar. O torpor corporal imperava, os únicos movimentos não passavam de lentos e curtos desvios das cabeças que observavam as reacções em redor. Por fim, no desfecho de escassos minutos que se assemelharam a horas, a voz calou-se abruptamente, e como comandada pela inquietação do silêncio, a locomotiva iniciou um processo protocolar de vapores, ruídos e vibrações que anteviam a sua nervosa actividade… a porta fechou-se de súbito e em violência, a evolução entrara em movimento.

Jornada longa e tortuosa esta a que nos submetemos. Uns começavam a empalidecer de arrependimento, reflectindo na face a expressão de quem está prestes a regurgitar no chão. Já a outros o espírito animava-se pela ilusória presença de imprevisibilidade aventureira. “Que sublime que é a expansão das nossas mentes!”, pensavam eles na sua humildade manchada de ignorância. A mim apenas me ocorria que eram estes os carris evolutivos sem retorno, e a palavra evolução sempre me cheirara a podre desde o início, mesmo apesar dos doces incensos com os quais a tentam esconder, logo, a minha desconfiança era permanente, obsessiva até.

Começou-se a avistar, passados largos dias, um horizonte dantesco que nunca nenhum de nós tinha sequer reproduzido no mais transpirado dos pesadelos, e só concluímos que seria este o destino prometido, essa estranha Mecanópolis para onde nos tínhamos dirigido. O gelo das visões próximas pairava, os calafrios apoderavam-se, enormes colossos de aço e ferro em paralisia cortavam os céus, os fumos espessos gritavam horrores, as cores eram lúgubres, as texturas severas, e por fim, a aproximação era cada vez maior.

Penetráramos finalmente nas entranhas da indomada criatura maquinal que era a metrópole, a locomotiva começara a abrandar o seu paço progressivamente, e não tardou até que num súbito estalido de inacção, toda a actividade cessasse. Esperávamos as ordens da indiferente voz mecânica que tinha vindo do intercomunicador antes do início da viagem, mas contrariamente ao que antevíamos não houve uma única indicação do que fazer, as portas limitaram-se a abrir, e nada mais. Estávamos agora por nossa conta pelos vistos, perdidos no futuro, ansiosos com o que seria da nossa vida agora no epicentro deste pleno desconhecimento, e então aos poucos e poucos começámos a abandonar a carruagem com a timidez de um minúsculo animal selvagem. Não sei explicar a razão, mas de tal forma foi o espanto causado pelos edifícios e estruturas que se edificavam fronte aos nossos olhos, que quando dei conta já nenhum antigo habitante da vila humana encontrava-se perto de mim. Seguiram todos em frente, cada um pelo seu próprio caminho, visivelmente hipnotizados com as infinitas estimulações visuais e as poderosas seduções tecnológicas que instigaram uma feroz explosão de sensações nos ocultos meandros dos cérebros desprotegidos.

Impossível de negar ou contrariar o magnetismo, percebi o porquê de todos terem sido consumidos ao primeiro impulso, provavelmente tentaram combatê-la, à ansiedade canibal, mas a sua presença de facto provocara-me a mim também desconfortos indescritíveis no sistema nervoso. Preferi prosseguir com esse tormento e não ser devorado pelos incontáveis tentáculos da cidade, toda esta Mecanópolis me continuava a causar repulsa, e a escolha da resistência dolorosa aos seus hipnotismos pareceu-me mais sensata. Assim o escolhi, restando-me permanecer perplexo, agoniado.

E aqui estou eu neste momento, estático, incrédulo, supondo que tudo isto me seja abominável, toda esta peste que vai avançando, toda ela, perdendo-se num obscuro de asfalto e cimento que não mais finda… Sinto em minhas pálpebras o peso de um ranger atroz, uma convulsão inebriante sustida pelo insuportável odor mecânico desta futura e gélida cidade degenerada… que agora alcança os rios e os montes e os prados de planaltos ancestrais, acorrentando-os aos cabos tortuosos de aço e a outras abominações feitas de metal... grilhões artificiais, calabouços contemporâneos, é o que são.

Ó triste realidade automatizada que te extendes até à linha ténue onde termina o horizonte, não deixas qualquer espaço para ímpetos ou singelas imperfeições aleatórias, sublimes instintos. Estás despida dos majestosos e verdejantes píncaros, das árvores milenares, todas elas incompletas, fazendo vénias ao imprevisto e ao fulgor da vida! O quão tudo isto era belo, e se ao menos eles o soubessem, se ao menos reconhecessem... Mas agora tudo é previsto, programado, está tudo acabado, é o tédio mecânico que corrói a humanidade…

“Mas basta! Concentra-te!”. É crucial que me deixe de divagações, e então sacudo a penumbra por momentos. Ao menos que inicie uma qualquer marcha de procura por entre os gigantes titânicos de aço e betão, caminhando ao lado destes alcatroados rios negros onde correntes incessantes de veículos inquietos se apressam para algum lado que eu desconheço. Pode ser que encontre algum vestígio da humanidade livre do contágio maquinal, anseio por ver alguém orgânico de corpo e pensamento, algum indivíduo sem veias que não sejam já cabos de aço e cujo sangue fluído não se tenha transformado em óleo espesso, eu preciso de alguém vivo! Mas de nada adianta, nem forçando contacto com as robóticas figuras fantasiadas de pessoas se obtém alguma resposta, todos se apressam para algum lado, e nos seus olhos se reflecte que as razões nem eles mesmo as sabem, ninguém liga a ninguém, ninguém olha para ninguém... que triste selva de indiferença... O meu desalento atingiu, agora mesmo, patamares insuportáveis, sinto-me a ruir!

Não tardou muito até que, após alguma insistência frustrada, se me acendesse por impulso o instinto de correr de volta à linha férrea da evolução, não suporto estar neste limbo grotesco nem mais um segundo, talvez lá encontre saída, talvez algum percurso alternativo tenha sido pensado para o raro inadaptado, o defeituoso… seja o que eles me quiserem chamar, pouco me importa, apenas tirem-me daqui! Pode ser que me tenham reservado algum tipo de clemência, a mim e aos que do meu desconforto partilham. Esperançoso me encontro para que a simbiose mecano-humana não se tivesse tornado inflexível ao ponto de não pensar sequer naquele que é incapaz de se unir ao seu plano maquiavélico de unificação colectiva. Vá lá, tem piedade, nenhuma culpa tenho de não te desejar, ó tirana máquina!

E os gritos, desta vez vindos de qualquer lado indefinido que não um intercomunicador, fazendo o meu crânio latejar e tendo adivinhado os meus pensamentos, ou coisa semelhante, declararam com lancinante veemência:

“NÓS NÃO QUEREMOS QUE NOS DESEJES, Ó PENSATIVO INCONFORMADO, LONGE DISSO! É-NOS INDIFERENTE! MAS DE NÓS FARÁS PARTE, OU DORAVANTE DE PARTE NENHUMA SERÁS!”

O terror corrompeu-me a pele e fixou-se no mais oculto e inalcançável canto da minha consciência, era a máquina ou a cidade ou o quê que ao certo eu não sabia que me violava cinicamente, Mecanópolis tinha forçado a entrada em mim! A aflição quase que me derrubava, mas neguei a queda apressando o paço meio que cambaleando, era urgente estar fora deste campo de guerra psíquica, e com algum esforço alcancei a mesmo carruagem que me trouxera até aqui, e entrei de rompante para a sua ilusória protecção.

Sem que qualquer tipo de instrução fosse dada e sendo eu o único passageiro, as portas fecharam-se ferozmente, as engrenagens entraram em rubor, os fumos e as vibrações seguiram-se. Fixada por cima dos caminhos da evolução a locomotiva parecia querer apressar-se, culpada de algum tipo de atraso do qual apenas agora se relembrara, e por entre ruídos e oscilações, surgiu a voz mecânica originária do intercomunicador fixado junto ao tecto de aspecto rude e trágico:

“Bem-vindos ao sentido único e sem retorno da evolução. Próxima paragem, A ANIQUILAÇÃO DA HUMANIDADE. …Fim de linha.”

Desta vez a voz não se exprimiu repetitivamente, um único anúncio, sem insistências de relembrar qual era o destino, serviram para que a locomotiva abandonasse a sua posição estática, começando a marcha infernal até essa tal terra d’A Aniquilação da Humanidade. Não sei explicar porque razão, mas apesar do eco de tais palavras parecerem-me tenebrosas, incidiam sobre mim de forma reconfortante, acho que finalmente consegui perceber a teleologia do percurso social e humano, desfez-se a estranha questão de “onde tudo isto vai parar”… E parece-me que não será outro o destino que não este. Agora sei-o, estamos condenados… Nada a fazer.

FIM

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TODOS OS TEXTOS POR:
Bruno Abgrund

ILUSTRAÇÕES / PINTURAS POR:
1ª - Francisco de Goya (1819)
2ª - Hieronymus Bosch (1505)
3ª / ContraCapa - Otto Dix (1917 / 1924)